Xilogravura: A Alma Entalhada da Brasilidade
- Igor Kalassa
- 13 de out.
- 5 min de leitura
Xilogravura: Do Sertão ao Fashion
A xilogravura é muito mais que uma técnica de impressão; é um poderoso espelho cultural que reflete a alma do Brasil, especialmente o vibrante e resiliente Nordeste. Esta arte manual, forte em seu traço e narrativa, transcendeu as fronteiras do papel e do artesanato, firmando-se como um ícone da nossa brasilidade e, mais recentemente, como uma grande inspiração para o design e a moda brasileira contemporânea.

O Que É a Xilogravura? Arte em madeira, técnica de impressão artesanal, xilografia)
Xilogravura é uma técnica milenar de impressão artesanal que utiliza a madeira como matriz. O processo é de um entalhe minucioso, onde o artista retira (cava) as áreas que ficarão em branco, deixando em relevo as partes que receberão a tinta. É, essencialmente, um "carimbo" de madeira.
Matriz e Impressão: A tinta é aplicada sobre o relevo, e a imagem é transferida para o suporte (papel, tecido, etc.) por pressão manual ou prensa. As madeiras mais comuns no Brasil são a umburana, o cedro e a cajazeira.
Identidade Visual: Por ser uma arte de reprodução manual, popular e acessível, a xilogravura se tornou uma forma essencial de narrativa imagética do povo, carregando consigo a força do traço e a autenticidade do artesanal.
Xilogravura no Brasil: O Casamento com o Cordel
A xilografia chegou ao país com os colonizadores portugueses no século XVI, mas só encontrou sua identidade genuinamente brasileira a partir do século XIX, consolidando-se no início do século XX, especialmente no Nordeste.
O ponto de virada foi seu casamento indissolúvel com a literatura de cordel. As capas dos folhetos de cordel, vendidos em feiras e mercados, passaram a ser ilustradas com xilogravuras, transformando-a na identidade visual do sertão. A técnica, de baixo custo e alto impacto visual, tornou-se o veículo perfeito para dar rosto e forma aos heróis, mitos, dramas e sátiras populares.
A Brasilidade Entalhada: Imaginário Popular e Resistência Cultural
A xilogravura faz parte do patrimônio imaterial brasileiro e do imaginário do Brasil profundo. Seus temas são um rico mosaico da vida nordestina:
Vida Sertaneja e paisagens áridas;
Cangaço e a figura de Lampião;
Religiosidade popular e crenças;
Festas populares e lendas do interior;
Crítica social com poesia visual e humor.
Ligada ao artesanato e à cultura popular, a xilogravura se estabeleceu como um símbolo de resistência cultural brasileira, uma manifestação artística que sobrevive e se renova sem perder suas raízes regionais.
O Processo Mágico: Como Se Faz uma Xilogravura
O domínio técnico é o coração desta arte.
Escolha da Madeira: Umburana, cedro ou cajazeira são lixadas e preparadas.
Desenho e Entalhe: O artista desenha a imagem (invertida) e, com goivas e formões, retira a madeira das áreas que ficarão em branco. A parte em relevo formará a imagem.
Entintagem e Impressão: A tinta (geralmente à base de óleo ou água) é aplicada no relevo com um rolo. O papel ou tecido é pressionado, revelando a gravura.
Tiragem: Cada impressão é única. Obras de arte são geralmente numeradas e assinadas pelo artista.
O estilo varia: do traço incisivo e chapado da xilogravura popular (ideal para o cordel) ao refinamento técnico e texturas de grandes nomes da arte moderna e contemporânea.
Mestres da Gravura: De J. Borges a Goeldi Artistas da xilogravura: J. Borges, Oswaldo Goeldi, Movimento Armorial
A xilogravura brasileira se divide entre a força popular e a pesquisa artística:
J. Borges (José Francisco Borges): O maior mestre vivo da xilogravura popular nordestina. Seu trabalho, que começou ilustrando seus próprios cordéis, retrata o cotidiano sertanejo com cores e traços inconfundíveis. É reconhecido internacionalmente pela UNESCO.
Gilvan Samico: Um dos pilares do Movimento Armorial, fundado por Ariano Suassuna. Suas gravuras, de linhas precisas e simetria mística, buscam a essência da cultura popular nordestina para criar uma arte erudita.
Ariano Suassuna não era gravador, mas foi um grande incentivador cultural. O Movimento Armorial buscava criar uma arte brasileira de caráter erudito a partir das raízes populares do Nordeste, elevando a xilogravura a um patamar artístico.
Oswaldo Goeldi: Considerado o pai da xilogravura moderna no Brasil. Seu estilo é expressionista, sombrio e urbano, retratando a solidão e as figuras marginalizadas com uma estética forte e universal.
Outros nomes essenciais incluem Lívio Abramo, Rubem Grilo (crítica social) e Anna Letycia (referência feminina).
Movimento Armorial
O Movimento Armorial foi criado em 1970 por Ariano Suassuna, com o objetivo de valorizar e integrar as manifestações artísticas populares do Nordeste brasileiro — como a música, a literatura de cordel, a xilogravura, o teatro e a dança — a uma produção erudita nacional. A proposta era construir uma arte brasileira autêntica, com raízes na cultura sertaneja, nas tradições ibéricas medievais e na religiosidade popular, rejeitando influências estrangeiras que descaracterizassem essa identidade. O movimento teve como berço a cidade de Recife e ganhou força sobretudo através da música de câmara armorial, dos folhetos e gravuras do cordel e da dramaturgia de Suassuna.
Na xilogravura, o Movimento Armorial exerceu enorme influência ao aproximar artistas populares de ambientes acadêmicos e críticos. Nomes como Gilvan Samico ganharam reconhecimento nacional e internacional pelo refinamento técnico e pela simbologia inspirada em mitos, cavaleiros, animais fantásticos e cenas sertanejas. O movimento não pretendia copiar o folclore, mas transformá-lo em arte sofisticada, preservando seu caráter poético e simbólico. Até hoje, o Armorial é referência estética e cultural, considerado uma das iniciativas mais importantes na construção de uma identidade artística brasileira com raízes profundas na tradição popular.
O Impacto da Xilogravura na Moda Brasileira Tendências moda brasileira, estamparia artesanal, design folk
Se a xilogravura narra a cultura visual do povo, a moda brasileira encontrou nela uma fonte inesgotável de inspiração e autenticidade. O traço forte e a estética gráfica da técnica, antes restrita às capas de cordel, migraram para o vestuário e o design, tornando-se um símbolo de design folk e cool regional:
Estamparia com Identidade: As estampas inspiradas em xilogravuras, com seus contornos chapados, bidimensionais e contrastes marcantes (geralmente preto e branco ou cores vibrantes), se tornaram um diferencial no design de superfície. Elas adicionam profundidade e narrativa às peças de roupa, bolsas e acessórios.
O Artesanal na Alta-Costura: A estética da xilogravura é frequentemente utilizada por estilistas e grandes marcas para conferir um valor de artesania e exclusividade cultural às coleções. Peças que remetem a essa técnica são vistas como parte da moda com raízes, o que é um movimento forte no cenário globalizado.
Folkmarketing e Desenvolvimento Local: A apropriação dos elementos xilográficos, especialmente os temas de J. Borges, é uma tendência que impulsiona o desenvolvimento local em feiras de artesanato (como Caruaru, PE). A xilogravura em camisetas, ecobags e acessórios funciona como um elemento comunicacional e mercadológico, transformando a tradição em um produto de moda contemporânea e valorizando a cultura de origem.
Reconhecimento Internacional: O impacto é tão grande que, em diversas ocasiões, marcas internacionais de luxo buscaram inspiração ou foram acusadas de apropriação indevida da estética do cordel, o que só reforça o poder e o reconhecimento global da xilogravura nordestina como um estilo inconfundível.
A xilogravura é a madeira que fala, entalhando no tecido da nossa cultura popular um traço forte de brasilidade que, hoje, veste e adorna o nosso país, mostrando a força criativa do sertão ao mundo da moda.





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